segunda-feira, 28 de março de 2011

Notas soltas - sobre as "Bem-Aventuranças"

Ler "As Bem-Aventuranças" - Mateus cap. 5 e Lucas cap. 6

«A pior das solidões, o mais negro dos fados, não é o poder sentir com mais ou menos verdade que ninguém gosta de nós; é, pelo contrário, sentirmos que não somos capazes de gostar de ninguém. Aqui sim, tudo se joga. Aqui, sim, importa tocar e dizer bem alto que o maior pecado que nos atormenta, aliás, o único pecado que somos capazes de cometer, é o da negação do amor ... é triste chorar porque se ama, mas é pecado, e pecado grave, não amar para não chorar.»

«O que temos diante de nós é realmente a Carta Constitucional do cristianismo, e o texto mais revolucionário da história da humanidade.
-Sofre? É violado nos seus direitos? Passa fome? Não tem o mínimo com que viver com dignidade? Sente-se só e abandonado?
- Tenha paciência porque essa é a vontade de Deus ... e na eternidade vai ser muito feliz (!)
É este o adiamento pecaminoso, opiáceo, neurótico e estúpido da esperança.
Uma das minhas revoltas contra este tipo de misticismo que jamais esquecerei, aconteceu à cabeceira de uma doente terminal de cancro. O padre que lhe falava disse a certa altura: "Tenha paciência que essa é a vontade de Deus..." Brilhante!»

«Uma das maleitas que aflige e muito a nossa reflexão tem a ver com o facto de estarmos mais ou menos convencidos que a nossa eternidade começa no momento da nossa morte... Outro erro crasso... O facto é que a nossa eternidade tem de começar no momento da nossa concepção.
Então, se assim é, este tempo, este espaço e esta terra são já tempo, espaço e terra de eternidade; então, se assim é, o momento da morte transforma-se no momento mais alto da vida; então, se assim é, o momento da morte é o momento do encontro definitivo com Deus, logo, o momento da morte é o momento da ressurreição!
Creio que até hoje só Francisco de Assis foi capaz de entender tudo isto até às últimas consequências e, por isso, foi capaz de chamar "irmã" à morte.
Perdoem-me a possivel vulgaridade das palavras, mas é também ao nível da linguagem que gira à volta das formas celebrativas do mistério mais profundo da fé cristã que importa ter a coragem de mudar os termos usados. São ainda muitas - demasiadas - as circunstâncias em que ouvimos falar de "celebrar missas pelos mortos"! Como é possivel?
É que se realmente Cristo ressuscitou, na expressão "celebrar missas pelos mortos", temos nada menos que dois erros grosseiros. Em primeiro lugar, em Cristo ressuscitado não há mortos mas vivos... em segundo, não temos o direito de celebrar missas pelos mortos, mas de celebrar a Eucaristia, a acção de graças, com aqueles que connosco continuam a ser intimidade com Deus de uma forma mais perfeita.»

«Bem-Aventurados os pobres ... são proclamados felizes, não os que não têm o mínimo com que viver com dignidade, mas sim os que reconhecem que tudo o que têm provém de Deus e, por isso, se abrem incondicionalmente aos outros. Esses que colocam todas as suas "riquezas", sejam elas de que tipo forem, ao serviço dos outros. "Caim, que fizeste de teu irmão? -Eu não sou responsável pelo meu irmão!" Quanta actualidade numa frase com 2500 anos de história...
Eu posso ser muito mais rico ao possuir um carro a desfazer-se mas que eu não coloco ao serviço de ninguém, do que ao possuir um carro de último modelo que coloco ao serviço de todos e, ainda por cima, fazendo eu de condutor...»

«A este propósito importa ouvir o Prof. Agostinho da Silva: "Eu não tenho uma religião; há uma religião que me tem a mim"»

«Bem-Aventurados os que choram ... porque quem não chora não ama. Estando um dia Madre Teresa a limpar as feridas de um leproso moribundo, diz-lhe o jornalista que a acompanhava: "Eu não era capaz de fazer isto nem que me dessem todo o dinheiro do mundo." Madre Teresa levantou por momentos os olhos do doente que estava a tratar, olhou para o jornalista e respondeu: "Olhe que eu também não"»

«Bem-Aventurados os mansos ... ser manso é, em última análise, alguém em equilíbrio consigo, com os outros e com Deus. Confúcio dizia que "por trás do sorriso estão os dentes"... Nunca sentiu que lhe sorriam com vontade de morder? Não chega só ser "simpático" (sun+pathos = sofrer ao lado de alguém, com alguém...); somos empurrados à empatia (en+pathos = sofrer dentro, fazer minha a luta do outro)
Ouçamos António Aleixo: "O mundo só pode ser ,/melhor do que até aqui,/quando consigas fazer,/mais p'los outros que por ti"»

Excertos tirados do livro "Roteiro de Leitura da Bíblia" de Frei Fernando Ventura

sábado, 12 de março de 2011

Estou a ler um livro

Estou a ler um livro com o título "Roteiro de leitura da Bíblia".
O primeiro capítulo tem um título fantástico: A Bíblia nasceu da vida ... e não resisto a partilhar um pouquinho:
"Neste livro proponho falar-lhe de outro Livro que é, acima de tudo, uma aventura de vida e de intimidade ...Uma biblioteca de 73 livros, cada um com o seu estilo e forma própria de expressão, que constitui uma aventura que vê envolvida a humanidade na busca de si própria, dos seus porquês e para quês, e da própria intimidade de Deus ... que se faz proposta de relação, que espera uma resposta de adesão ou de recusa.
Só não pode haver lugar para a indiferença. ... atrevo-me a dizer como ele (D. António Ferreira Gomes): «Tenho muita fé nos ateus; se forem honestos, chegarão a Deus. Um cristão convencido é que não tem conversão possivel»
Num tempo em que abundam as opiniões mas faltam as ideias ...a vontade de pensar temas tão sérios como o do sentido da vida e da História, do tempo e da eternidade, de Deus e de nós.
Mateus revela-nos o segredo: «Todo aquele que escuta as minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha». Escutar e pôr em prática; não se recusar nunca a pensar pela própria cabeça ... correr o risco de ser livre."

Portugal e os portugueses por Eça de Queirós

Estou a ler as Farpas (escritas a partir de 1871 por Eça e Ramalho Ortigão) e não resisto a deixar aqui algumas considerações que não podem ser, pelo menos para mim, mais actuais e justas.

A propósito do encerramento das "Conferências do Casino", diz:
«... lembrem-se antes de tudo o que o país necessita é - força para o seu carácter, ciência para o seu espírito, justiça para a sua consciência! Falai-lhe das questões económicas, do salário, do trabalho, da família, da sanção moral, da educação ... A política deixai-a sempre ficar consigo mesma. O nosso grande erro em Portugal tem sido querer principiar constantemente as revoluções pela política, fazer dela uma causa ou um meio, quando logicamente e seguramente ela não pode nem deve ser nunca senão uma consequência ou um resultado»

E, já agora, a propósito dos programas, manuais escolares, exames nacionais e dos "iluminados" do Ministério da Educação que os aprovam, leia-se:
«... lancemos os olhos ao livro elementar destinado ao ensino agrícola nas escolas nacionais. O autor do compêndio que temos aberto a nossos olhos chama-se o sr. António Francisco Moreira de Sá*.Vamos ler.
Pergunta. A que se chama ferramenta de lavoura?
Resposta. A um instrumento simples, portátil, o qual posto que conste de diferentes partes, parece todavia feito de uma só peça.
P. A que se chama máquina de lavoura?
R. A máquina é um instrumento complicado e composto de várias peças, que se podem desarmar.
P. O que é arado?
R. É o que não tem jogo dianteiro.
P. Que se pode dizer do centeio?
R. Depois do trigo é dos mais úteis cereais.
P. Que se pode dizer do arroz?
R. O arroz é originário da Índia onde eles fazem do arroz o mesmo uso que nós do pão.
P. Que há a respeito do feijão?
R. O feijão divide-se em várias qualidades.
P. Que é necessário para haver bom esterco?
R. Sabê-lo produzir, conservar e empregar.»

Maravilhoso!!! Agora, atentem na continuação:
«O sr. Moreira de Sá, cujo livro tremendo e profundo como o olhar de um idiota, nós sentimos não poder reproduzir integralmente nestas páginas, prova nesta sua obra imortal que o autor conhece assustadoramente o grande mistério de produzir, conservar e empregar o esterco! A crítica extra-oficial respeita e admira neste livro todo uma leiva ubérrima de óptimos farináceos, e a única coisa que nos parece haver a respeito do feijão - além das qualidades em que ele se divide - é que este legume certamente se regalaria muito plantado neste livro.
As Farpas, em nome da agricultura portuguesa, folgam de ter esta ocasião de animar o sr. António Francisco Moreira de Sá e a crítica superior e oficial da instrução pública a que continuem a enriquecer-nos - produzindo.»

*(1825-1880) Professor de instrução primária, autor de muitos compêndios sobre variadas matérias e almanaques.